“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Contos do Reduto Um

* Arte e tratamento fotográfico: Katiuscia de Sá



Ricardo de Assunção tinha vinte e quatro anos quando aportou na cidade de Belém do Grão Pará. Visitara a acidade à trabalho. Viera do Sul. Havia terminado seus estudos em Direito e precisava exercê-lo. Soube por um companheiro que o Norte estava necessitando de recém formados. O ano redondo de 1940 prometia muita sorte ao jovem. O empecilho existia apenas nos transtornos que dona Roselinda despejava sobre o filho: “mas o Norte é muito distante... e não conheces ninguém lá. Onde vais morar, meu filho querido?”

Nem os apelos, nem os mimos da mãe contrariaram a vontade do moço de tez decidida. Aprumou os óculos redondinhos. Eriçou os bigodes fartos. Tocou-se para Belém do Grão Pará. Encontrou estalagem de imediato! Acercou-se da cidade das mangueiras assim que pisou mansos os pés no chão esquadrilhado do cais do Reduto.

Alugado o imóvel em plena 28 de Setembro por apenas uns míseros cruzeiros, “Que maravilha!”, festejava Ricardo de Assunção. A sorte lhe sorrira. Da primeira impressão do bendito imóvel, algo lhe intrigara, entretanto.

Ao entregar as chaves do casarão, o dono advertiu Ricardo para trancar todas as janelas do solar. “Vê se pode essa!”, pensava o jovem sulista inflexível aos caprichos do velho proprietário. “Onde terei fôlego de percorrer essa estrada de corredor a fim de trancafiar toda a casa...”

No momento do acordo, o belo rapaz piscou seus olhos claros, assentindo à conversação com o locatário, mas não tinha idéias de levar a sério caduquices ao pé da letra. Depois do almoço Ricardo ficara passeando pela casa observando a riqueza dos detalhes das paredes marchetadas, do soalho em estilo português. Um primor.

E as janelas! Ah! As janelas... um vendaval pela casa adentro. Imagine trancar tudo àquelas horas. A ventania era maravilhosa; valsavam as cortinas, espalhando sombras esfuziantes fantasticamente celebradas pelos cômodos de rosto austero.

Às vezes o balançar daqueles panos em renda parecia esconder alguém a passear pelos cômodos. Outra hora as paredes pareciam ranger os dentes ao mesmo tempo em que se ouviam passos surdos no infinito dos corredores.

De repente os cômodos de face austera lançavam olhares raivosos sobre Ricardo, como se ele fosse um intruso desnecessário. Como o rapaz viera do Sul... não percebia aqueles avisos. Até que findando a tarde, o recém formado advogado ouvira barulhos vindo da janela frontal. Foi ter o que era.

Pedregulhos estavam sendo atirados para dentro do salão. Quando o rapaz queria se aproximar da janela para avistar a traquinagem de moleques, intensificavam-se os pedregulhos mais e mais, impedindo Ricardo de olhar a rua.

Enquanto isso a escuridão apoderava-se do interior do imóvel. E os ponteiros do relógio dependurado bem acima de onde o moço estava, engoliam vorazmente as horas. A chuva já era intensa! Os pedregulhos furavam as cortinas. O chão próximo ao parapeito da janela já estava soterrado de granizo. Os cantos das paredes destruídos pela trepidação cada vez maior. Ricardo mais e mais apavorado...

Os granizos já perfuravam as faces do rapaz, beliscavam as peles dos braços respingando sangue sobre o chão. Quando o ponteiro arrastou-se indicando um minuto engolido das horas; subitamente os pedregulhos sumiram de imediato, aproveitando Ricardo para olhar a rua.

De um relance não havia ninguém. Não havia luz na casa. Encontrando os olhos de Ricardo horroroso espectro, que afundou janela adentro, transpassando o jovem apoderando-se de tudo. Ricardo de Assunção esquecera-se da recomendação caduca do velho proprietário. O rapaz que viera do Sul não fechou todas as janelas da casa antes das 18:00h.


Katiuscia de Sá
04 de abril de 2010
Às 18:03H
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*este conto inspirou meu primeiro curta-metragem "O FORASTEIRO".
Conheça os bastidores do filme aqui:
http://curtaoforasteiro.blogspot.com.br/


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