“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CUIA D'ÁGUA - capítulo dois


Capítulo dois: Dos Acontecimentos.

Diariamente embalados pelo vento da madrugada, espalhavam-se eles como um desabrochar de Tamba-Tajá. Vinham de diversos cantos da cidade. Era bonito de se ver, pareciam promesseiros transbordando oferendas para algum santo. Caminhavam lentamente, ainda sob o efeito de bolhas de sono, embebes por um transe sereno e gentil. Executavam uma coreografia de comum acordo de todos que surgiam das penumbras. Montavam suas barracas de feira.

Epidemias coloridas, o alaranjado e enrugado ouro desfolhando-se novamente – um sol parido da manhã. Seus raios preguiçosos vazavam calor e movimento ao caminhar crescente junto aos paralelepípedos da Castilhos França e arredores da feira do Ver-O-Peso. Todo tipo de homens e mulheres traziam seus pregões, na esperança do ganha-pão de cada dia.

Eram os feirantes. Os pescadores. Ferreiros. Sapateiros. Carroceiros. Frutas. Legumes. Jarros e garrafas. Pimenta de cheiro. Pimenta do reino. Farinha d’água. Cachos parrudos de açaí. Paneiros. Cerâmica marajoara. Caixotes arregalados de limões. Anéis de latão, cordões, brincos de vidros coloridos que alegravam o coração das mocinhas em idade vaidosa. Tantas e tantas mercadorias outras que se possa imaginar.

Até leitões vivos dialogavam aos berros, de igual para igual com todos que ali estivessem! E sem essa balburdia de falatório embriagado de sons, cheiros, cores, gritos, sorrisos e malandragens, não existiria o corpo taludo da feira, e sem esse corpo não haveria também a alma irrequieta do Ver-O-Peso na pessoa de seus freqüentadores.

E ao calor do sol desamarrotado, tudo ganhava graça e movimento numa saturação de matizes e gestos. À medida que a quentura roçava àquele lugar, aumentava também o som da orquestra: vozes e estrondos de caixotes jogados no chão; tilintar de facões decepando corpos de peixes; ressonar de carroças passando; chinelos arrastando-se em pegadas fumegantes. Tudo tinha ali para todos.

Acordes crescentes de um Altino Pimenta, a música da feira era regida por uma batuta cabocla e invisível... Minúsculos carimbós amorenados nas ancas carnudas das moças paraenses torciam os pescoços masculinos que por ali passassem – uma vertigens de jambú... Era assim a invasão da melodia vespertina, todos os dias na maior feira da América Latina.

Tudo começava a ganhar jeito por volta das quatro da matina. Aos olhos de quem estivesse fora daquela rotina dramaticamente espetacular, o que se via era uma pintura caprichosa, dinâmica, dolorosa e desordenada, embriagada de odores definitivos e exclusivamente nortistas, cores explosivas e sotaque paraura ainda escutado nos dias atuais.

A vida movimentava-se num ritmo único e circular. Um Lundum, um Siriá ou talvez um carimbó. Gestos misteriosos cortejados por uma neblina úmida de rio, com o sabor e suor marimbondo. Vidas entrecortadas – um clima místico e envolvente, um sagrado-profano ao parto majestoso e doloroso daquele lugar mágico e úmido, a feira parindo-se todos os dias através das mãos dos feirantes.

Os primeiros a desaneblinarem-se do transe preguiçoso da noite, eram os pescadores. Muitos dormitavam no próprio barco ancorado aos cais. Os caboclos saiam de suas naus carregando um silêncio religioso, como se realizassem uma prece de gestos. Mal se falavam, comunicavam-se através do olhar e das intenções. Tratava-se de uma compreensão diferente, como o influxo e refluxo das pequenas ondas enamoradas do cais.

Alguns cabras passavam a tarde e metade da noite pescando motivados a venderem o resultado das redes, na manhã seguinte. Os náuticos homens manobravam os caixotes pitiús, jogando os peixes macerados na pedra e os banhavam para estarem sempre fresquinhos ao julgamento e olhos atentos do freguês.

Seguidos dos peixeiros, chegavam os pequenos donos de barracas. Alguns mais caprichosos, forravam o tabuleiro com jornal “A Província do Pará” ou com “A Folha do Norte”, antes de deitarem as frutas.

Sim! O zelo dos feirantes é para o agradamento do freguês. A exigência deste era tanta, que os legumes vinham organizados por cores, tipos e tamanhos. Aos olhos do consumidor, as mercadorias gabavam-se como bandeirolas coloridas e sorridentes.

Na parte mística da feira – estavam as famosas “garrafadas”; as ervas milagrosas; olho-de-boto; defumações para todos os gêneros e gostos (e problemas...); amuletos benzidos, compotas, etc. – neste beco de feira também havia uma maneira de se apresentar as mercadorias. A ordem dos produtos vinha do menor para o maior em termos de importância. O freguês muito necessitado do poder místico, perdia-se por entre as barracas de ervas, que por vezes lembravam um pequeno território da selva Amazônica (cheiros, cores, bichos, mistérios...). Tudo ali era feito discretamente, à surdina da investigação de boca em boca. O sigilo continua sendo a alma dos negócios...

Às sete da manhã a feira já está em sedas e toalhas quentes, toda prontinha, aguardando as mãos e os olhos da freguesia sobre si: vovós e vovôs. Adoram madrugar para serem os primeiros a pisar naquele solo sagrado e falador. As últimas notícias sobre tudo e sobre todos da cidade, se fazia conhecer primeiro naquele lugar e por aquelas bocas...

”Esse quiabo não está bom!”

“Queres me roubar no preço! Olhe, veja só!”

“Menina... a dona Zulmira não pegou a afilhada em semvergonhice com o Matias ontem, atrás da cortina da sala...”

Mesmo parecendo agressivo para um voyeur desavisado, tudo não passava de um teatrinho de comum acordo entre feirantes e velhos fregueses de longa data. Boas relações de amizade e confiança.

Caro leitor, caro leitor... as relações humanas são cheias de mistérios que a selvageria pré-histórica deixou fossificada na modernidade. E o que parece antipatia, trata-se na verdade, da manifestação de carinho e reconhecimento da existência do outro. Viver moldado em uma sociedade civilizada requer muito trabalho mental e raciocínio – um teatro de caras e bocas. A comunicação humana vai além das palavras, é algo quase incompreensível e inacreditável – a civilização!

Igualmente no meio da turba, todos os dias o punguista profissional Cesário passeava pela feira, pronto para começar seu trabalho de observação.

“pegaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Aquele cabra ali roubou minha carteira!” E uma cobra de rabo se formava, vários caboclos agindo em favor da vítima, correndo sofregamente: “Lá vai ele... pega, pega, pega, olha aí, olha...” – mas ninguém conseguia pegar o malandro. Este se enfiava por entre as barracas, abaixava-se por detrás dos passantes, dava meia volta, volta e meia, entrava num buraco qualquer. E só era visto novamente passados uns dias. Os policiais não podiam fazer nada. Nunca pegaram Cesário. O sujeito continuava em sua lida diária,trabalhava duro...

Um dia Cesário estava num canto ao paredão do Mercado de Ferro. Suas grandes orbes acompanhavam todos os lances dos transeuntes desavisados. Os olhos do ladrão até pareciam independentes, como os de um camaleão. Era assustador a perspicácia daquele bandido. Até então, nada conseguia tirar- lhe de seu ponto de equilíbrio...

“Que anjo lindo... simplesmente lindo...”.

Era mesmo uma beleza selvagem e inocente, sensual e provocante. Cesário foi invadido por um sentimento visceral, arrebatando todas as correntes que amarravam seu coração pantanoso de raposa. Como uma navalha afiadíssima, rompeu um corte fatal no interior do golpista, que nem ele mesmo se apercebera... jorrava um desespero de não saber o que estava acontecendo dentro de si. E ao mesmo momento em que o ladrão era invadido por tais sentimentos desconhecidos, um prego enferrujado rasgava a pele de seu dedo. A mão de Cesário escapava para junto de um caixote adormecido no meio das frutas, “ai cacete...”. Num relance desviou os olhos de seu anjo. Quando voltou seu rosto amarelo e sem vida alguma em busca da moça, não havia mais nada. A partir daquele momento Cesário perdeu todos os sentidos. Enlouquecera de paixão por aquela garota.

“Quem é ela? Preciso saber.” A passos pesados e desnorteados foi ter com Nhêga Balbina. Rodeou-a como uma serpente d’água. “Balbina, o que há de novo?”. Quando a rendeira levantou os olhos em direção ao ladrão, um vento frio afugentou sua alma. A artesã dos fios penetrou nos filamentos do coração-bandido constatando que Cesário, que sempre fora doente da alma e governado por todas as torpezas da humanidade, agora estava embebido de um antídoto doloroso e eficaz: o amor. Era assustador... quando o amor chega a tocar o coração de pessoas como este ladrão, desconhecedor dos limites e escrúpulos para seus caprichos perversos, o “amor” não é exatamente como o julgamos conhecer em seu mais belo aspecto. A emoção fica pelo avesso, tornando-se sentimento grosseiro, arrastando-se como correntes de uma prisão dos sentidos. Sem escapatória transforma o ser que ama em indivíduo possessivo e agressivamente ciumento, não sabe desvincular o sentido de posse, do integro ato da renúncia.

– Santo Deus! – exclamou Balbina, arregalada.

– Nhêga, tu sabes quem era aquela moça ajuremada que estava aqui, indagorinha mesmo?

– Não vi, não sei e nem quero saber... e chispa daqui Cesário, não quero tu espantando meus fregueses!

– Ora tia Balbina, era a afilhada do mestre Potiguar, já esquecestes? Estavam aqui comprando ervas na sua banca – elucidou os fatos, o abobalhado Stélio saltitando por algo a fazer.

– hmmm... então a moça é da ossada de mestre Potiguar – Cesário foi se afastando da realidade diante daquela informação. Imaginava como poderia aproximar-se da moça. Sua mente perspicaz logo percebeu que a menina não saia de casa sem a presença do velho capoeira.

– Deve haver algum jeito... – matutava.

Desde esse dia Cesário não se preocupava em colocar seus dedos magros em cima das carteiras alheias, e até mesmo recolhia sua palidez monetária dos freqüentadores do Ver-O-Peso. Era absorvido por Jandiara. Sua mente arquitetava um meio de vencer todas as impossibilidades que o destino, naturalmente transpôs entre ele: assumidamente larápio e vagabundo, e a índia Kaiapó.

Pela primeira vez, o bandido se deu conta no quê seus atos o transformaram. Sabia ser impossível esse romance acontecer, real apenas em seus devaneios. Isso o amargurava profundamente. O seu desejo por Jandiara transformou-se em cruel castigo psíquico por todos os furtos cometidos por ele, desde o dia em que roubara o camafeu de sua tia.

Passados alguns dias, novamente mestre Potiguar encontrava-se no Ver-O-Peso, estimulado por suas compras habituais na feira. Jandiara o ajudava a carregar as sacolas. Cesário a observava de longe, como caranguejeira antes de consumar o inseto preso na teia. O branquelo punguista emagrecera mais ainda, sua face estava em ossos; seus olhos afundaram-se em olheiras maciças, parecia que tinha sido socado nas vistas. Andava desalinhado nos cabelos, nas roupas encardidas, camisa em desabotôo. Verdadeira alma penada vagando pelo mercado.

Em torno do bandido, Anônimo soprava-lhe pensamentos loucos de raptar a moça para juntos viverem o amor destorcido do coração de Cesário... mas Potiguar já havia previsto em seu terreiro que algo de muito ruim estava para acontecer em breve. Uma vez no seu ponto de candomblé, lá no Jurunas, um de seus filhos de santo foi morada de Preto Velho na roda, segredando-lhe este em transe: “nhô preto, cuidado cum zóio de cobiça! Guarde a menina de jambu bem longe das mão de furto, senão uma desgraça há de acontecer...”

(...)

Cesário seguia em direção a Potiguar e Jandiara, que circulavam bem no coração do Ver-O-Peso. O moço caminhava como se não tivesse vontade própria, ia sendo puxado pelo desejo de possuir a moça. Seu corpo e alma não mais lhe pertenciam, estava fraco da cabeça e esta era dominada por Anônimo: “anda, vai lá. Peça para carregar a sacola das mãos de Jandiara, mostre ao mestre Potiguar que és prestativo...”

Tal salamandra, Cesário apresentou-se aos dois: – Bom dia mestre Potiguar... posso ajudar a carregar as compras?” – o rapaz retorceu os olhos de cobiça em direção à moça Kaiapó. Potiguar, por sua vez, estranhara o cordial comportamento de Cesário, foi educado recusando a oferta inusitada vinda do ladrão, e rapidamente arredou Jandiara de perto do bandido. Ambos caminharam apressadamente para longe das vistas do mão-leve.

O bandido ficou imóvel... triste, de uma tristeza autoconsciente. Não ousou levantar os olhos do chão. Sentia-se um nada, um tostão de réis sem valor perdido numa sarjeta lamacenta. Pela primeira vez em toda sua vida – chorou.

Os passantes enterrados em sua pressa habitual, nem percebiam as lágrimas no rosto amarelado do bandido. Ele mal sabia como se comportar a mercê de novos anseios profundos e desconcertantes provenientes do amor. Não compreendia tais sentimentos, apenas as sensações, e estas eram deficientes para alcançar a perfeição de tal virtude. O rapaz lentamente morria em seu interior. Sua alma de carniça estava sendo devorada a bicos de urubus.

Anônimo continuava a arrebanhar o pouco que sobrara de Cesário: “se ela não pode ser tua por força do destino comum, cave um destino para ela! Ofereça-me uma porção de imbu, mais um trago de cachaça na encruzilhada, que eu te ofertarei o coração da moça...”

Vagarosamente o punguista afundava-se nessa sugestão, e quando estava no lamaçal de inflexões até o pescoço, raspou seus bolsos em busca de um boró para tomar o bonde até a Avenida São Jerônimo. O ladrão ia à procura de não-sei-quem, que sabia de um homem que fazia “amarrações”.

Decidiu-se em optar pela oferenda ao Maligno em toca de possuir o coração de Jandiara. Já dentro do coletivo, Cesário não pensava em nada, parecia sem alma; junto dele seguia invisivelmente Anônimo, sorrindo vencedor, ambos atravessados pelo mesmo pensamento. Nem prestavam atenção no trajeto que o bonde fazia. Não consideravam a eficiência do transporte coletivo trazido a Belém pelo norte-americano J.B. Bond, ignoravam também que este refinado homem viria tornar-se cônsul dos Estados Unidos residindo na cidade das mangueiras no inicio de 1900. Não sabiam Cesário, nem Anônimo que antes de abraçar o consulado o ilustre Sr. Bond foi o responsável pela implantação das linhas de bondinhos a partir do ano de 1868 e por mais trinta anos seguintes. Mais tarde esse progresso ficou sob custódia da Cia. Urbana de Estrada de Ferro, também da Cia. de Bondes Paraenses, entretanto as linhas de bondes urbanos na capital nortista popularizaram-se definitivamente pelos braços da empresa inglesa “Pará Eletric Railways and Company”, a partir daqui que as coisas melhoraram, porque no inicio de 1868 as linhas de bondes eram poucas e restritas. Entretanto, a investida urbanística e paisagística na cidade de Belém ganhou fôlego através do então governador Antônio Lemos. Além dos bondes elétricos e ampliação de suas linhas, a cidade ganhara iluminação pública elétrica e também as contas a pagar... Nas décadas de 1920, havia condução disponível na av. São Jerônimo; praça da República; na Av. 15 de Agosto; na Rua Paes de Carvalho, na Av. 16 de Novembro e no próprio Ver-O-Peso. O regresso dos coletivos passava pela Rua João Alfredo e Santo Antônio; retornando novamente pelas ruas iniciais ao trajeto.

Saiba querido leitor, que o “boró” que Cesário raspara de seu bolso em pagamento pela condução oferecida, funcionava como uma espécie de vale-transporte. Os usuários dos bondinhos de outrora pagavam sua passagem com esse “boró”.

Mas como o progresso é um menino forte, teimoso, faminto e esperto... ele deu cabo dos saudosos bondinhos. Sendo eles suspensos de uso em 26 de abril de 1947, e a Cia. Pará Eletric ficou responsável até a década de 1950, apenas pela geração de energia pública na cidade. E o transporte coletivo foi orquestrado pela Viação Sul Americana. A novidade estilística ficava por conta do designer do ônibus: em formato de zepelin. No entanto, essa é outra história em um outro tempo. Voltemos a 1930, onde o lendário ladrão do Ver-O-Peso e Anônimo ainda curtiam um passeio de bonde.

Cesário desceu do bonde na São Jerônimo, caminhou um pouco até em frente a uma casa verde, bateu palmas e chamou por um tal de Alonso. Quase como um segredo, o ladrão abriu a boca: – “Óh Alonso, abre a porta... sou eu: Cesário!”.

Um fio de janela abriu-se vagarosamente, e de lá um par de olhos amendoados surgiu da penumbra: – “Entra, homem!” – Alonso aviou dois tragos de pinga e ambos sentaram-se junto a uma mesinha modesta e acanhada. O ambiente era árido, os restritos móveis que habitavam lá, estavam todos gastos e machucados por causa do tempo, sendo que as janelas fechadas da casa aumentavam ainda mais o aspecto lúgubre do recinto.

Aproximando-se de seu comparsa, o ladrão anunciou como se fosse devorá-lo: – “Alonso, preciso de um favor seu! Como se chama o cabra que faz amarrações?” Alonso assustou-se com a repentina investida: – “Olha, toma cuidado com isso, homem! Esse negócio é perigoso... eu faço de tudo nessa vida, mas não gosto de mexer com o desconhecido... essas coisas do tinhoso!”

– “Anda, homem! Deixa de frescura... Preciso mesmo. Diga-me logo”!

Meio acabrunhado, o dono da casa cuspiu a resposta contrariado do amigo:

– “Não é um home, é uma mulher quem faz esses troços. O nome dela é Dionísia”. Alonso puxou um pedaço de papel do bolso de sua camisa desalinhada e mal abotoada, era a notinha da pinga que comprara na manhã de anteontem, da qual consumia ambos. Aprumou uma ponta de lápis das algibeiras, anotou algo em garranchos.

– “Taí, mas não a contrarie!” – Com um pesado semblante completou o serviço de informante: – “Ela faz o que pedimos, mas sempre nos pede algo em troca. Seja lá o quê for, dê a ela, senão a criatura te pragueja para o resto da vida...”

Cesário não escutou uma linha sequer da recomendação do amigo. Agarrou o papel e arreganhou os dentes tortos e amarelados de cárie e nicotina. Libertou uma gargalhada negra e sinistra, apreciou o colega de furto, com os olhos em bugalhos e saiu depressa sacolejando seu corpo magro e desconjuntado. Nem olhou para trás. Foi no local ensinado por Alonso, no mesmo dia.

Chegou ao tal endereço quase à noite. Ainda não era hora morta. A porta da casa estava aberta, haviam umas pessoas sentadas num banco longo estirado na parede lateral da sala. Cesário fez o mesmo até chegar a sua vez.

Após quase duas horas de espera, guiado por um homem de aspecto aterrorizante, Cesário desemboca numa sala repleta de objetos estranhos: garrafas de vidro em líquidos ensopando animais empanados, bichos peçonhentos dependurados dissecados numas prateleiras decoradas na parede de cimento e barro. Lá estava a Dionísia confundindo-se com seus próprios artefatos. Seus cabelos brancos-acinzentados, desgrenhados e insolúveis estavam domesticados com dificuldade por um laço vermelho. Os olhos dela permaneciam sem o bago. Notoriamente em transe, dirigiu-se a Cesário: – “Sei porque estás aqui, cabra...”

Com indelicada persistência, o ladrão metralhou a réplica: – “Então faça o quê vim pedir-lhe, velha!”. Consumida por um sorriso de escárnio, Dionísia maldosamente confirmou o trato, mas pediu algo em troca para o ladrão.

(...)

Passados uns noves dias, todos no Ver-O-Peso notaram a ausência do punguista, alastrando-se boatos de que ele fora preso pelos pracinhas, lá para as bandas da Avenida 15 de Agosto. Em seguida vinha logo a versão dos pesqueiros, afirmando de pés juntos que Cesário havia bebido tanta cachaça próximo ao cais, que tropeçou e caiu nas águas do Guajará. Outros diziam que Cesário se juntara aos rebeldes que tentaram o levante da Revolução de 30, contra o governador Eurico Vale, e por isso havia sumido do mapa por uns tempos, até que a poeira baixasse...

O certo é que todos estavam aliviados pelo desaparecimento do bandido. E a vida na maior feira ao ar livre da América Latina continuava, em ritmo de siriá. Cachos de açaí fresquinhos à venda suculenta do suco. Comércio de folhas raras e “mágicas” vindas diretamente da floresta amazônica. Cheiros cheirosos de patichouli, garrafadas, artefatos diversos, maniçoba crua e cozinhada. Jabús, carne de sol, e inoportunas iguarias outras, de gosto para tudo! E num dia comum desses, que Jandiara e Bentinho avistaram-se pelo meio da feira. Naquele turbilhão de gente indo e vindo, feito ondas da baia do Guajará junto ao pé do cais do Ver-O-Peso, o jovem casal sumiu com o povo dali. Não havia ninguém ao redor deles, somente o olhar de um para o outro. A predestinação do rapaz acontecera: era de Jandiara o coração dele; e de Bentinho, o dela.

Como a menina havia se agradado do rapaz, foi tudo mais fácil quando o moço pediu ao mestre Potiguar para namorá-la de porta. O velho capoeira percebeu a sinceridade nos olhos do mulatinho. Mas o chamego entre eles era vigiado num ajuste de namoro sério e compromissado, com hora marcada para começar e terminar de baixo das barbas de Potiguar. Das 18:00h até às 20:00h, um namoro comportadamente sentado no sofá da sala tendo ao meio de Bentinho e Jandiara, a porção de gente moradora da casa do velho capoeira. Era dureza... mas Bentinho se satisfazia com o único beijo de boa noite permitido. A bela indiazinha entregava esse afago ao seu amado, junto ao portão da casa, momentos antes de Bentinho ir-se embora.

Numa noite dessas, Bentinho fora abordado por Cesário, que reaparecera pelas redondezas, depois de um mês mais ou menos. O vendedor de cigarros estranhou a repentina aproximação do ladrão. Extremamente sombrio e imóvel, penosamente o punguista soltara a voz:

– Olá bentinho... tens cigarros aí?

– Boa noite Cesário. Desculpe, mas não vendo cigarros fora da minha banca na feira. Mas se passares lá amanhã bem cedo, te vendo uns, certamente.

– Não. Eu queria uns agora... – o malandro andava vagarosamente e todo melindrado às vistas de Bentinho. Já soubera que este mantinha compromisso sério com a índia protegida de Potiguar.

– Eu soube que estás namorando Jandiara...

– Sim, é verdade.

Bentinho desconfiava, queria sair daquele diálogo sem jeito.

– Cesário eu vou indo. Tenho que acordar cedo amanhã, afinal trabalho na feira, sabes como é. Boa noite.

Mal terminara a frase, Bentinho enfiara-se rua adentro numa pernada só, desaparecendo na primeira quebra de esquina. O bandido permanecia imóvel, encostado no muro defronte a casa da moça kaiapó. Era paciente, posto que Dionísia assegurou-lhe que o coração de Jandiara seria dele e de mais ninguém. Diante daquela esperança chafurdada, Cesário emagrecera ainda mais (se isso era possível!). Tornou-se uma caveira ambulante. Sua face ossuda e cadavérica mal podia manter os dentes acavalados dentro da boca. Dava medo seu semblante inóspito. Ele agora era sobressaltado por visões do inferno. Vez por outra avistada uma sombra de gente que o rondava constantemente. Sempre o mesmo espectro: Anônimo.

(continua...)

Katiuscia de Sá

Belém/Pará – 2005.

CUIA D’ÁGUA – capítulo Um:

http://hellenkatiuscia.blogspot.com/2010/11/cuia-dagua-capitulo-um.html






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