“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

CUIA D'ÁGUA - cap. 04




Capítulo 4: Da Salvação

Balbina estava serena enterrada em seu costumeiro trabalho de preparar banho de ervas, quando algo a arrebatou dessa tarefa manual. A senhora levantou-se, indo até a cozinha. Despertou para sua cuia d’água em cima do jirau, e viu claramente o que acontecia com Bentinho, Cesário e Anônimo... Balbina mesmo com todos os poderes passados de geração em geração, não podia penetrar no mundo das Horas Mortas. Lembrou-se dos Encantados! Atraiu a presença de Norato, Iara, Uirapuru e do Curupira, eles pelejariam em favor do mulatinho em apuros.

Norato – cobra grande feito Bóia-Ussú, praticava o bem em oposição à outra serpente, ajudava os pescadores dos rios amazônicos, resgatando-os de naufrágios e tempestades. Ele agiria junto com Iara – sereia dos salgados, habitante das águas oceânicas do Norte do Brasil; tinha ancas de peixe formoso, com cauda recoberta de escamas douradas. Seus olhos eram dois faróis de estrela, a moça encantada tinha os cabelos negros como noites das lendas da tribo Tupinambá. Da outra ponta do escalão, ficaria o passarinho tímido e arredio, o pequeno Uirapuru, de poderes místicos contra as entidades do mal. Seu canto é tão poderoso que Tupã permitiu-lhe cantar apenas cinco minutos de um único dia em cada ano. O passarinho faria par com o maroto e rebelde menino das matas, o pequeno de cabelo de fogo e pés virados para trás. Travesso como ninguém, o Curupira confundiria Bóia-Ussú e Anhangá num piscar de olhos!
Pena que há essas horas o padrinho de Jandiara ressonava ao odor da cachaça do Abaeté, e sua alma perdia-se no equivoco entre o lá e o aqui... poderia ele ajudar Bentinho a safar-se da emboscada armada por Cesário e Anônimo, caso estivesse consciente de si!

Como dizem os sábios – o corpo físico precisa fadigar-se para que a alma se liberte, mestre Potiguar estava nesse estado, infelizmente a peso da cachaça...

Neste instante o troféu da disputa entre os dois homens, dormia. Jandiara sequer imaginaria mesmo em seus sonhos, o que estava acontecendo com seu amado Bentinho. Contudo, as forças do Bem e do Mal estavam em pé de igualdade. Na praça do Carmo, Bóia-Ussú já liberto das entranhas da terra, lançava seu olhar de encantamento para ferir os olhos do vendedor de cigarros, mas Bentinho estava tão atordoado que mal podia manter-se de pé.

Com os olhos fixos em sua cuia d’água, Balbina acompanhava os fatos. Os aliados tocaram-se rumo a Cidade Velha, em direção ao Largo do Carmo. Já com o plano miraculoso em ação, o Curupira soprou à Bóia-Ussú que os Encantados estavam à procura do passarinho Uirapuru, por isso a serpente medonha não os importunou, nem desconfiava do real motivo deles adentrarem naquele fragmento de Hora Morta. Fingiram não ligar para o pobre rapaz que perdia mais e mais os sentidos, diante o horror do encantamento do poderoso peçonhento.

Na verdade Uirapuru estava descansando bem no topo da cabeça de Bóia-Ussú. Começara o jogo! O passarinho iniciara seus minutos de flauta... a serpente permanecia imóvel sob aquela maravilhosa melodia. Então o pequeno Curupira arrastou consigo Bentinho dali, que nem mais imaginava o que ocorria, em completo estado de apatia. Iara atirou-se em direção de Cesário, intimidando-o com sua beleza sobrenatural, ordenou ao ladrão para ele caminhar em direção ao cais do Ver-O-Peso e atirar-se na maré. Até hoje alguns pescadores que dormem em suas naus ancoradas no cais da feira, dizem ouvir um choro de homem, um agonizante lamento de amor durante as madrugadas de lua nova...

Enquanto Bóia-Ussú regozijava-se com o canto do passarinho, Norato cavava outra ponta do asfalto. Engoliu Bentinho e chafurdou a terra até chegarem num terreno seguro. Uirapuru terminou seu hino, Bóia-Ussú revirara seus olhos e viu que nada havia ali. Não encontrando o vendedor de cigarros, devolveu-se ao seu sono profundo, adentrado às entranhas da terra. Os ponteiros do relógio retornavam aos seus lugares. A Hora Morta na Praça do Carmo findara.

Faltava neutralizar agora, o terrível Anhangá, desprotegido do corpo do ladrão do Ver-O-Peso, que agora jazia bem no fundo da Baía do Guajará, voltara a ser Anônimo. Enquanto isso, noutro canto da cidade, a velha rendeira Natividade tecia sua tapeçaria, curiosamente o desenho era um sol com um casal de amantes trocando juras de amor. Faltavam poucos pontos em cruz para celebrar o desenho. Natividade ignorava a peleja que se afrontava bem no coração da Cidade Velha.

Natividade ao terminar o arremate e passar o nó no último ponto dado, um milagre aconteceu! A paisagem tecida abriu-se em diáfanos. Um pequeno lago de luz formou-se em torno do pano bordado. “Senhor, finalmente!” A velha incredulamente, exclamou com lágrimas nos olhos. Era chegada a hora. Natividade havia esperado mais de mil anos por esse momento. Concentrou-se, retornando ao seu estado Original. O anjo Natividade resolvera virar gente e cair na Terra na esperança de reencontrar Coaraci, seu grande amor. Há muito tempo atrás, Deus, na sua infinita misericórdia, apiedou-se de Natividade. O Altíssimo percebeu que um de seus amados anjos estava triste, pois este apaixonara-se pelo Sol.

(...)

Natividade tornou-se luz igual ao que brilhava na tapeçaria que acabara de fiar. Adentrou na paisagem indo parar exatamente onde Norato ruminava Bentinho para fora de si, salvando-o da presença de Bóia-Ussú. Ninguém percebia Natividade, sendo ela apenas um pontinho de luz, misturava-se aos vagalumes.

Mesmo agora a salvo da sinistra cobra do mal, Bentinho sofrera as conseqüências; por uma fração de segundos, ele olhara bem nos olhos de Bóia-Ussú, e seus sentidos foram atirados na areia fétida da praia negra dos Exus. Embora seu corpo a salvo, sua alma não poderia mais retornar ao mundo dos vivos... Bentinho estava morto.

Natividade foi até Jandiara, chamou os sonhos da moça para socorrer a alma de Bentinho, a pequena índia kaiapó pediu ajuda a Tupã, suplicou em lágrimas ajuda de Coaraci – o Sol dos indígenas, para que guiasse ambos. Sim! Jandiara pediu a Tupã para acompanhar seu amado nessa caminhada rumo ao horizonte. E como o apelo da moça veio do coração, não podia ser negado. Jandiara também falecera, dormindo.

Ao sentir a presença de Coaraci, Natividade compreendeu que seu Amor Perfeito estava presente, indo ambos ao encontro um do outro, formaram infinita luminosidade que guiava os passos do jovem casal enamorado. Bentinho e Jandiara seguiam em um belo cortejo de casamento rumo ao horizonte. Não existia passado, nem presente, nem futuro, apenas Amor infinito para aquelas almas.

(...)

Bentinho e Jandiara foram enterrados um ao lado do outro no Cemitério de Santa Izabel. Na ocasião fez uma tarde agradável. Passarinhos cantavam animadamente, rodopiando de arvore em arvore. O sol da tardinha estava morno e alaranjado, beijava as folhas secas que cantavam arrastadas pelo chão, ao sopro do vento. Uma sincera ladainha era entoada pelos presentes, última homenagem aos moribundos.

Ninguém mais soube de Natividade. Alguns acreditam que ela havia retornado à sua terra natal, o que de certa forma acontecera realmente... e do famoso ladrão do Ver-O-Peso, por muitas décadas imaginou-se mil e uma coisas, menos que Cesário havia morrido, pois como o próprio Anônimo dizia ao bandido: “o mal nunca morre, ele fica escondido, sempre a espreita...”. Ninguém sabia que corpo do ladrão jazia no fundo da baia do Guajará, e que sua alma chora sempre à meia-noite, sentado à beira do cais.

No dia seguinte ao enterro, a rotina dominava outra vez aquela gente colorida, os vendedores da maior feira da América Latina continuavam seus afazeres. Naquele frenesi cotidiano, uma criança derrotada pelo tédio de acompanhar a mãe às compras matinais, fora arrebatada para um pedacinho de jornal vencido, que escapava de baixo de frutas e legumes de uma barraca qualquer. Estava escrito:

“Belém, 04 de outubro de 1930.
Notas Fúnebres:
A Passagem Frederico, nº 801 – Jandiara Kaiapó, paraense, índia, 15 anos, solteira, dona de casa. Causa da morte: ataque cardíaco.
A Avenida Roberto Camelier, nº 125 – Bento Rodrigues das Chagas, paraense, mulato, 20 anos, solteiro, feirante. Causa da morte: ataque cardíaco”.


A correnteza da vida é indomável, leva tudo rapidamente ao esquecimento, permanecendo apenas flashes de momentos felizes e festivos que a memória humana teima em reter nas mãos. O reconhecimento do que é verdadeiramente belo em nossas vidas, é o que fica com o passar dos anos, por isso orai e vigiai...

Aquela última renda tecida por Natividade hoje em dia encontra-se serena num salão, repousando sobre uma belíssima mobilha protegida pelas paredes do suntuoso Museu do Estado do Pará, que é aberto à visitação.


~FIM~

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Katiuscia de Sá
Belém/Pará. 2005.
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CUIA D'ÁGUA
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