“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CUIA D'ÁGUA - capitulo Tres





Capítulo Três: Do Inevitável.

Foi numa noite de outubro que Bentinho bebeu pela última vez uns tragos, em comemoração ao aniversário de seu Tenório da Cunha. Os festejos foram ali mesmo no botequim Águia de Ouro. Ao longo de todo dia 03 de outubro de 1930, os trabalhadores do Ver-O-Peso ajuntaram-se para despejar parabéns junto ao dono do estabelecimento.
Apareciam mimos inusitados das mãos dos feirantes e amigos de Seu Tenório, um deles foi uma peixeira enferrujada. O senhor que ofertava o presente ao comerciante, dizia tratar-se de um artefato de família que trazia sorte. Seu Tenório aceitava tudo. Tinha gratidão e amizade com as pessoas que trabalhavam nas redondezas.
Bem ao finalzinho da tarde, mestre Potiguar e Bentinho passaram no boteco a fim de prestigiar o natalício do amigo. Stélio balbuciava algo enquanto circulava discretamente absorvido por entre os convivas do bar. Outros cabras enterrados em seus copos de cachaça, nem ligavam para o que Stélio falava, mas o rapaz doidinho era o único que conseguia distinguir a figura de Anônimo por entre as pessoas. O primogênito da família Costa Prado ficava imóvel a um canto, totalmente melindrado pela presença maligna porta a fora do estabelecimento. Certa vez, Stélio viu Cesário acompanhado pelo espectro horripilante, então dissera ao ladrão que havia uma sombra com sorriso de fogo junto dele, mas o bandido deu de ombros, achou que fosse mais uma crise de loucura de Stélio.
Do lado de fora do Águia de Ouro, Anônimo tentava as mentes fracas já chafurdadas na cana. O fantasma não podia entrar no estabelecimento devido à imagem de São Benedito da Praia. E nesse dia por tratar-se do natalício de seu Tenório, o pessoal ficou ali, beirando a meia-noite. Estava liberada a farra além do costumeiro horário de funcionamento do boteco. Na verdade para aqueles indivíduos macerados de rio e oleosamente bronzeados pela ensolarada labuta diária, tudo era motivo para ingerir o cotidiano em festejos alcoólicos.
O torpor da cachaça aliviava as dores do espírito – expiações que não se acalmam quando se leva uma vida difícil e sem sonhos. Como a vã Filosofia incentiva que todo homem precisa sonhar e sapatear a melodia das bacantes, cada qual deve encontrar a tal porta que liga o real ao imaginário inerente a cada um; nem que seja à base de narcóticos... e a alma do Ver-o-Peso, que são aquelas pessoas lindamente humildes e inocentemente desconhecidas de si, que carregam consigo a simplicidade gentio liberta de qualquer noção – vivem seus dias brancos entrecortados por um sol escarlate encorajado pela azulada maresia da cachaça do Abaeté. Desse modo, todos no Águia de Ouro estavam alegres. Ultrapassaram a linha entre o mundo real e o contemplativo, tudo era aguardente! Ironicamente, apenas Stélio mantinha-se sobre si. Mesmo embebes, ninguém oferecia álcool ao rapaz doidinho. Uma frágil sensatez.
Os últimos gatos pingados saíram do Águia de Ouro quase à meia-noite. Dispersaram-se cada um para um lado. Bentinho dissera ao padrinho de Jandiara que ainda devia passar na casa de uma tia que morava perto, “bem ali no canto... Na Cidade Velha”. Era imprescindível Bentinho ir lá para pegar um dinheiro para sua mãe quitar uma dívida logo pela manhã seguinte. O vendedor de cigarros não podia faltar àquele apelo materno. E para cumprir essa peleja, afastou-se do pai de santo, beirando seu caminho a passos acrobáticos; mais porre do que um peru prestes a falecer.
Já próximo a Igreja do Carmo, Bentinho fora abordado por um homem de cor, sentado encostado a um poste de esquina. Mastigava tabaco, costume surpreso pelos moradores da área, denunciando que o vulto tratava-se de uma pessoa do interior. Vestia uns panos crus, amarelados e levemente puídos. Seu cabelo seco, bem rente ao couro, indicava um senhor já bastante gasto pelos anos corridos. As cores do cabelo confundiam-se com as vestes. O homem tinha um aspecto assombrosamente debochado. Dominava-lhe um sorriso de escárnio disfarçado pelos cantos da boca semi-serrada. Em meio a esse sorriso desconfortável, o franzino velho negro com voz sumida dava luz a uma toada:

“A carroça leva os desavisados para junto da porta dos esquecidos...
Quem não molhar a garganta, ficará na companhia do maldito...”

Sem levantar a cabeça, o homem avistou Bentinho:
– Ei rapaz, faça um favô para esse véio nêgo. Dê aquela cuia d’água pra eu molhá minha garganta...
O vendedor de cigarros olhou para o lado, havia uma cuia preta com água dentro parada no chão. Bentinho não viu nenhum inconveniente em satisfazer a vontade do homem. Foi em direção à cuia, em seguida em direção ao velho, acocorou-se e depositou no chão a cuia d’água bem em frente ao homem. Então, o velho profetizou:
– A noite tá escura hoje, que nem o fundo dessa cuia... não achas, rapaz?
Foi quando o mulatinho inclinou-se para ver o fundo do recipiente. Sua cabeça começou a rodopiar. Estranhamente uns bem-te-vis iniciaram seu canto característico, mas em apenas uma nota: “hééééim... hééééim... hééééim...”, e ao redor, as formas das coisas foram destorcendo. Bentinho parecia cair sem parar num chão que ia se afundando! Quis gritar socorro, mas sua voz estava presa.
O rapaz olhou novamente para o senhor negro agachado a sua frente, aterrorizou-se. Este tinha os dentes serrilhados arregalados numa bocarra de pirarucu, e seus olhos ardiam em brasa. Anônimo disfarçado no velho da cuia, agora se transfigurou em um “Cancão de Fogo”, foi ele invocado pela bruxa Dionísia para roubar o coração da menina Jandiara para Cesário apossar-se. Entretanto, para isso acontecer, a feiticeira deveria evaporar de Bentinho toda esperança de amor que ele nutria pela moça kaiapó.
Em meio à vertigem, Bentinho tentava permanecer erguido, mas era difícil. Repentinamente a rua fora tomada de uma neblina espessa, que embriagava o rapaz mais do que a cachaça que ele bebera minutos antes, no Águia de Ouro. Foi cambaleando em direção às portas da Igreja do Carmo: “isso é coisa do maligno...”, pensou Bentinho. Precisava sair daquela encruzilhada antes da meia-noite. Caminhava com dificuldade, os passos pesados nunca chegavam à Igreja. Olhou ao redor, tudo mudara de aspecto. Um terreno remoto, lúgubre como um pântano. De repente ergueram-se horrendas árvores carregadas de cipós entrelaçados, escondendo a fachada da Igreja, que sumia dentro do mato. A noite enegrecera ainda mais!
Como um eco ensurdecedor, ouvia-se a gargalhada de Cesário. Bentinho sentia a presença de outras entidades além do velho Cancão, um vento frio que aos poucos ia congelando a alma do rapaz.
Completou-se a hora morta da noite. Os ponteiros dos relógios pararam. O tempo naquele pedaço da Cidade Velha estava nas mãos do Cancão de Fogo. Muitas sombras libertavam-se dos pontos. A visão dos infernos ecoando a risada de pisica e escárnio do ladrão do Ver-O-Peso atordoava mais e mais a mente de Bentinho. Havia uma maldade no coração do bandido, que mesmo o amor não podia permanecer são dentro daquele homem. E quando acontece dessa emoção sublime não mudar o ser humano, muda o próprio afeto, transformando-o em combustível para atrocidades sentimentais.
Cesário em pessoa apareceu naquele lugar de horas paradas. Sibilou um cântico. Com faces cadavéricas, com feições de Anhangá e os olhos revirados da orbe, o punguista iniciou vagarosamente uma canção, evocando Bóia-Ussú – a cobra grande do mal, que os ribeirinhos amazônicos acreditam cavar dia e noite por debaixo da terra, provocando as quedas e deslizes nas encostas e barrancos de rios.

“Bóia-Ussú... Bóia-Ussú
Cuja mãe adormeceu no parto,
Pai encantado,
Beiço encarnado
Venha a essa terra
Tomar conta do que é seu!
Cava em cima,
Cava em baixo,
Leva a alma
Desse desgraçado...”

Num salto, o chão tremeu. A dantesca serpente acordara de seu sono. Mexeu-se nas entranhas da cidade, causando leve tremor no Centro Histórico de Belém. Numa seqüência de rachaduras o chão despregou-se, abrindo espaço para desenrolar a cauda do gigantesco peçonhento. Uma agonia auditiva sem igual tomou conta de tudo. Como se todas as serpentes do mundo ao mesmo tempo sibilassem seus chocalhos!
A medonha Bóia-Ussú desobstruiu o chão bem a frente de Bentinho, emergindo sua colossal cabeça de ferro. De pele escarlate vibrante, a cobra fazia reluzir tal faca afiada, todo reflexo que nela rebatesse. Cegava os olhos. No alto da cabeça o animal exibia seus pequenos chifres abaulados.
Então, a cobra levantou sua face, desvirginando a terra e o asfalto; abriu vagarosamente os olhos, como se não fizesse esse gesto por anos a fio. Uns fiozinhos luminosos e negros mergulhados num copo de fogo. A sinistra aparição enxergava tudo com se fosse energia. Não enxergava as formas, apenas a alma das formas... Bentinho sentia-se como num pesadelo.

(continua...)


Katiuscia de Sá
Belém/Pará
2005

Nenhum comentário:

Postar um comentário