“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Cidadela do Campo - capítulo Um

[Para Marco].


*Romance infanto-juvenil (Realismo Fantástico)
[CAPÍTULO  UM]


[Em relação ao amor, é uma estrada muitas vezes escura e sempre desconhecida. Não se sabe onde pisar, até pisarmos... não se sabe até onde se pode chegar, pois o amor romântico parece ser uma estrada infinita cheia de surpresas escondidas. Realmente amar e se dedicar a alguém é tarefa árdua, que pede muito equilíbrio emocional, respeito mutuo, cumplicidade e entrega... há quem enlouquece, há quem desiste pelo caminho. Mas há também aqueles que mesmo com medo no coração, seguem caminhando com os olhos furados e pés descalços em brasas... porque amar é algo inexplicável, como alguém com o coração eternamente queimando em chamas azuis].

Zuzu caminhava lentamente, sentindo o aroma da terra úmida conversando com as solas dos seus próprios pés descalços. Abandonava-se àquele belíssimo momento solitário em que as horas se liquidificavam pela chegada da noite. Ela via o sol se pôr no horizonte, aquele Astro gentilmente convidado pelo Universo a retirar-se da órbita da Terra e do dia; a luz de um rei derrotado escoltado pela melodia da ventania acariciando o matagal ao longe. Ao mesmo tempo em que Zuzu era privilegiada ao testemunhar este maravilhoso encanto da Natureza, a mocinha de quinze anos, tal como o mesmo sol derrotado que ela via desbotar no céu, assumia para si finalmente, que estava apaixonada por Leans – o anjo que sempre estava consigo; mas somente ela via e ouvia.

– Então você admite? – sussurrava Leans.

– E por acaso adianta eu negar alguma coisa para você? Afinal você ouve e sente tudo o que acontece dentro de mim... – a menina muito enterrada em si, com a voz ensanguentada continuou como se afogando nela própria: – Sim, Leans. Eu o amo.

Flutuando com suas belíssimas asas, o anjo rodopiava em torno da menina; e mesmo com sua aparência jovial, tinha o peso de todos os séculos nos olhos, igualmente a sabedoria no peito emplumado. Leans a olhava com tamanha ternura e entrega, com seus olhos de orvalho... orvalho que nasce nas manhazinhas para lembrar ao tempo corrido de todos os dias, que a noite existiu e que beijou àqueles que dela se mantiveram à deriva; feito o amor do Dia pela Noite que chora esse mesmo orvalho para morrer logo em seguida, antes que o sol acorde queimando qualquer esperança de ambos um dia se tocarem.

– Compreendo sua tristeza, pois também a tenho, Zuzu. Você acha que não sofro feito você? Que não tenho vontades de lhe sentir a pele, de beijar-lhe... de fazer amor com você? Isso é muito torturante pra mim. Um ser alado e divino por essência, mas que está ligado à Terra por causa do amor indevido por uma mortal.

– Mas você mesmo me disse um dia, que somos imortais também! – silenciava a menina constatando mais uma espinha em seu rosto adolescente.

– Sim, vocês o são... mas estão sob outra condição material que não a nossa. – baixava os olhos Leans, como se quisesse esquecer-se de tal constatação.

Após as solenes sentenças, Zuzu continuava caminhando em direção ao nada, seguida por Leans que às vezes sumia nos céus indo ao longe, mas sempre mantendo sua pequena sob custódia de suas vistas. Foi quando quase distraída, Zuzu se deparou com alguém emborcado atrás de um pequeno montinho de capim. Não soube identificar quem fosse num primeiro momento; então a adolescente continuou indo na direção do vulto. Foi neste instante que Leans pousou perto e também viu aquele individuo dormindo enroladinho sobre o monte de mato.

– Quem é ele, Zuzu?

– Sinceramente Leans, eu nunca o vi por aqui.

Ambos se aproximaram. Zuzu atirou-se tocando aquela pele fria bem azuladinha e clara, acordando o sujeito. Então a criatura virou-se com seus olhos todinhos pretos e amendoados, pareciam sorrir por encontrar alguma gente. E sem o menor constrangimento, a jovem propôs dialogo:

 – Oi. Meu nome é Zuzu e este aqui no meu lado é Leans, o anjo. Mas ele só eu posso ver e ouvir... mas ele tá aqui do meu lado, viu!?

A criatura ergueu-se, equiparando-se à mesma estatura da menina; mais magrinho que Zuzu, entretanto. E todo sólido. Parecia ser de metal de tão lisinha sua pele e brilho. A criatura apenas a olhava, parecendo sorrir com os olhos; e isso Zuzu entendeu, pois sorriu de volta.

– Zuzu, acho que ele não fala. – Concluiu Leans também muito curioso.

– Não sei... tenho a impressão de que ele fala sim... mas não sei por onde. – Zuzu ajeitava seus cabelos negros e longos que caiam sobre seu ombro incomodando-a, ao mesmo tempo a menina sentia algo vindo da criatura, porém não sabia exatamente o quê. Dificilmente saberia, pois a criatura se comunicava através de sentimentos extremos, refinados. Suas vias sensíveis eram vinte vezes mais desenvolvidas do que na população da Terra; e havia um agravante maior: o fato de que na Cidadela, ‘emoções’ eram contra a Lei, sendo todos os cidadãos punidos ao serem pegos portando esse algo ilícito.

– Levamos ele conosco, Leans?

– Eu não sei. O que você acha que sua tia vai dizer?

– Poxa... veja-o. Parece ter a mesma idade da gente...

– Você quer dizer a SUA idade, né? Esquece-se de que sou um anjo secular? Sei que às vezes minha aparência de rapazinho a confunde, mas não esqueça de que tenho pelo menos uns oitocentos anos a mais que você. – Sorria. E seu sorriso atravessava feito punhal no coração da menina, pois Leans era lindo... entretanto, Zuzu não podia tocar-lhe.

Retomando seu semblante tristonho, Zuzu pegou na mão da criatura e seguiu conduzindo-a até sua casa. Estava certa de que sua tia abrigaria o alienígena até saberem como ajudá-lo de fato. No caminho Leans e sua garota retomaram o assunto de antes. A menina receava descobrirem que carregava sentimentos consigo, mesmo que ainda muito pequenos... temia que delegado Chico Cornelius desconfiasse e a mandasse prender por ela estar de posse de algo ilícito.

– Perdoe-me, Zuzu. Se eu não estivesse aqui você nunca sentiria nada e estaria salva da prisão... – O anjo sentia-se impotente diante daquilo.

Lá pelo meio do caminho, os três passaram defronte à propriedade de dona Virtude – a senhora muda, que era dona de uma fazendola, onde ela mesma cultivava às escondidas alguns sentimentos bem no fundo do seu quintal. Ela estava a regar seu pequeno canteiro próximo ao portão quando viu os jovens, e através de gestos bastante efusivos, a senhora acenou para Zuzu e a criatura, indo eles se chegando para junto dela.

– Oi dona Virtude. Como está a senhora hoje? Está uma linda noite, não? Veja como  o céu está limpinho, deixando escapar as estrelas. Sim eu também gosto... – A mocinha respondia a conversa a cada abanação das mãos de dona Virtude, enfatizando alguma nova sentença.

– Sim... Leans está aqui comigo... a senhora sabe que ele sempre está... e esteve e sempre estará... enfim. – Zuzu pronunciava isso com tamanha tristeza no coração, e seu vacilo denunciava em seu rosto que ela estava portando algo ilícito, embora em pequena quantidade, mas se fosse pega em flagrante pelo delegado Chico Cornelius, já era prova suficiente para a mocinha estar encrencada.

Dona Virtude pediu com gestos para que a menina aguardasse um pouquinho, enquanto ela sumia para dentro da casa. De volta em breves instantes, a anciã trazia a muda de uma plantinha brilhante de folhas cor-de-rosa. E vendo aquele vegetal, prontamente o alienígena fez questão de abrigá-lo em suas mãos azuladinhas. Dona Virtude ficou-lhe tão sentida com aquela demonstração repentina de afeto que acariciou a pele lustrosa e geladinha da criatura, num ímpeto de conceder-lhe um beijo nas faces. Então a criatura lhe respondeu com um sorriso escapado do canto de seus olhos. O engraçado é que dona Virtude também compreendeu a criatura, mesmo sem palavra alguma. E sorriu-lhe de volta.

– Obrigada, dona Virtude pela planta. Prometo que irei cuidar para que cresça defronte de casa. Aposto que nos dará uma ótima sombra nos dias quentes e abafados... sobretudo, solitários... Tchau. Boa noite. – Zuzu falava quase sem vontade, devido lembrar-se a todo momento de sua enorme solidão sempre acompanhada de seu grande amor, um anjo que nunca poderia tocar.

Os três embrenhavam-se no caminho de terra iluminado apenas pelo parco brilho das estrelas, pois naquele ponto afastado do centro da Cidadela ainda não havia luz. A criatura não demonstrava insegurança por estar num local que não conhecia e com gente que não falava sua língua, ia amparado pela mão da adolescente. E, Zuzu e Leans há muito caminham juntos no escuro da mesma trilha, e não havia nada mais que os surpreendesse nessa vida, a não ser algum dia os dois poderem experimentar o beijo um do outro.

[continua...]

Katiuscia de Sá
Escrito entre: 07 e  11 de julho de 2013

*ouvindo sempre “Stairway to Heaven”, (Led Zeppelin) e “Wish You Were Here” [LIVE], (Pink Floyd).

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