“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 27 de julho de 2013

A Cidadela do Campo - capítulo Dois

[Para Marco].


*Romance infanto-juvenil  (Realismo Fantástico)
[CAPÍTULO  DOIS]



[O amadurecimento prescinde de muitas lágrimas. Os ritos de passagens são sempre muito dolorosos e repletos de desesperos, por galgar cada degrau que nos leva à absoluta escuridão. O dilatar das sensações em busca de algum ponto luminoso dentro de nós mesmos. A tristeza extrema é também uma temperatura do calor que transforma os elementos para algo mais leve, mais sutil... Uma sobriedade dos sentimentos que resistem aos fardos e, sobretudo, ao abandono da esperança. Em terras distantes a dor é assimilada como a canção de todos que passaram pela existência e mantiveram firmes em suas mãos a alegria pura que em vida seus corações puderam sentir].

“Você não tem hora pra nada… não tem compromisso com nada…” – Zuzu lembrava-se das palavras da tia daquela manhã. Ficara tão magoada e por isso mesmo havia saído de casa o dia inteiro desejando a imensidão do campo, para deixar suas tristezas naquele matagal alto que se inclinava feliz conforme a direção dos ventos. A mocinha não compreendia porque os adultos sempre tinham que afirmar para si (e para o mundo), que rumo tomar na vida. Zuzu tinha a alma larga, espaçosa, sedenta de experimentações, de vida, de vontades... alma tão imensa como uma poesia que abriga todas as esperanças do mundo; e por isso mesmo ninguém entendia quando a adolescente dizia que queria ser artista. A tia de Zuzu preocupava-se com essa escolha, pois ‘Artista’ era um oficio perigoso naquele momento social. O Governo estipulara um Decreto Oficial onde esclarecia que todo ato ou construção intelectual que fomentasse agitação de alegria ou sensibilizasse o Espírito das pessoas, seria considerado fora da Lei. Mas Zuzu nascera justamente com esta vocação nas entranhas, e por mais que quisesse adaptar-se ao mundo, era-lhe impossível. Sua verdade era maior até mesmo do que a perdição das pessoas por desejarem, às escondidas, qualquer sentimento.

– Parece que hoje o caminho está mais escuro do que de costume... – mastigava Zuzu as palavras entre os dentes, febrilmente angustiada e quase fora de si. Ela olhava rente aquele nada escondido no caminho sombrio à sua frente; carregava consigo um semblante à beira do limite de si mesma.

– Por favor... quantas vezes eu terei de me desculpar por amá-la? – Confessava Leans com seus olhos de orvalho derramando sobre sua face, tornando sua pele alva ainda mais cintilante. O anjo se ressentia por saber tudo o que se passava no interior da menina; não podia evitar também aderir à tristeza que Zuzu era obrigada a carregar sobre si. Um peso tremendo capaz de adoecer até mesmo o espirito mais otimista da face da Terra. E numa explosão de angustia retida, Zuzu largou a mão da criatura que conduzia consigo, e pôs-se a chorar convulsivamente:

– Porque você despertou sentimentos em mim, se você não seria capaz de correspondê-los? Porquê...? – E como querendo fugir de si mesma, Zuzu disparou a correr noutra direção, sendo seguida por Leans e pelo alienígena, que se ressentia bastante da dor que a menina carregava no peito. A garota queimava por dentro aquele fogo azul que rasga as entranhas, possuindo a alma de quem um dia teve a audácia de amar alguém na vida...

Após desbravar os campos selvagens e esquecidos pela desumanidade, quando não tinha mais forças no corpo nem nas pernas Zuzu abandonara-se, deixando-se desabar sobre a terra; e mesmo que aquele chão mestiço quisesse ampará-la não seria capaz, pois às vezes a realidade é tão dura quanto o solo que nos recebe os pés descalços nesta caminhada individual, que é a vida.

Quase como um uma canção vinda do céu entoada pelos ventos àquele campo solitário, Zuzu deixava escapar seus pensamentos. Sua boca escorria para o queixo as lágrimas silenciosas de uma dor tamanha e intensa comum aos corações jovens e apaixonados de primeira viagem. Não cabendo mais em si, a jovem desabafava para ninguém.

– É por isso que dizem que sentimentos são perigosos... isso faz as pessoas sofrerem... – Zuzu encarava o anjo, cuja dor espiritual poderia ser comparável à covardia de todas as pessoas que se negam viver em sua plenitude o Amor que lhes é oferecido pelo Universo. Do outro lado Leans chorava as dores dos séculos vividos... chorava todos os olhos dos amantes que foram impedidos de viverem suas paixões na vida.

– Zuzu, isso não vai ajudar em nada... por favor... sei que é difícil, mas tente se recompor.

– Não é uma troca justa, Leans. Seus sentimentos aqui dentro de mim em favor de minha companhia pra você. Sentimentos não me servem pra muita coisa, afinal não sei o que fazer com eles... ainda mais: deixam-me péssima. Fico assim tão sem rumo. Não posso tocar em você... não posso abraça-lo... eu trocaria todos meus anos de vida só para me perder em seu abraço, meu amor! – as lágrimas surgiam livres pela face de Zuzu tão jovem e já tão sofrida pela desilusão precoce.

A menina de joelhos sobre o barro fora da estrada em que os três iam. Zuzu apenas sabia de um turbilhão dentro de si; emoções desconexas de medo, solidão, amor, ciúmes... e todos eles vindo por causa de Leans e para Leans. E novamente ela o encarou, tão trancada em seu próprio desespero juvenil:

– Cheguei à minha escuridão... e a única luz que vejo é você, mas você me machuca... O amor é um demônio, Leans... me ajude, por favor! – e pela primeira vez os olhos de Zuzu também eram de orvalho, e escorriam pela sua face, deixando aquele semblante inocente e angelical ruborizado por uma cólera invertida, uma angústia sem medidas. E o pobre anjo ali, sem poder abraçá-la e ampará-la... parecia um eterno castigo – um acorrentado ao outro, justamente porque se amavam.

– Porque deve ser assim, Leans? Você tão próximo e tão longe de mim... – e num ato de desespero, a jovem tentava inutilmente tocar a pele daquele anjo que também chorava ao lado dela; mas era em vão. Leans mostrava-se tal espectro transparente que a menina podia atravessá-lo se quisesse.

– Sinto que estou prestes a enlouquecer, meu amor... – confundia-se Zuzu em direção ao seu anjo. – Por favor, me ajude... seja generoso comigo; Leans me esqueça... vá para bem longe, um lugar que você me esqueça e assim também eu o esquecerei.

Nesse instante a criatura estava tão envolvida com o que se passava, que pôs uma de suas mãos sobre o plexo da menina. E como num passe de mágica, retirou toda aquela sofreguidão de dentro dela. Após todos se acalmarem, o anjo sentou-se ao lado de sua amada. Em principio ficaram largos momentos em silencio, contemplando apenas a escuridão embalada pelos sons do vento e da noitinha que se alastrava por tudo. Depois, curioso para saber quando e como foi estipulado pelas autoridades da Cidadela, que portar sentimentos era fora da Lei; então o anjo perguntou à sua amada.

Zuzu ficou trêmula, pois tudo que envolvia essa decisão radical por parte das autoridades, fazia retornar aos tempos de caos social, (falavam os mais velhos). Contudo, a menina sabia de algumas histórias...

– Dizem que tudo começou quando um morador da Cidadela se apaixonou por uma senhora das redondezas... eu não sei bem, pois eu era muito pequena, e os adultos sempre nos escondem a Verdade... mas minha tia uma vez cochichou isso com uma amiga dela e sem querer eu ouvi.

E com sua imagem muito desfocada de si mesma, feito holograma em televisão mal sintonizada, Zuzu entrara num transe secreto, e pôs-se a falar feito um pequeno aparelho reprodutor de som:

– É o Vento dos Murmúrios, uma tempestade infernal... havia muitas décadas que ele não se formava. Os mais velhos diziam que se trata do anuncio de tempos ruins. Um aviso. Dizem ser o próprio fantasma de Loryanna perambulando com seu cabelo de vassoura dentro da tempestade... de tempos em tempos ela vem à Cidadela e toca nos moradores deixando sobre eles um pouco de sua saudade... a saudade de seu amado que dorme eternamente – Tomázio.

Após proferir o pequeno relato, a jovem retornara ao normal como se despertasse de um pequeno cochilo momentâneo. E Leans aproveitou logo para perguntar quem eram aquele Tomázio e Loryanna. E quando a garota continuaria a história, o céu já bastante pálido, partiu num relâmpago inesperado e as estrelas vinham descendo lentamente em forma de pingos de chuva acompanhadas pelos ventos dos campos, agora bastante agitados. Era o próprio Vento dos Murmúrios se aproximando, feito a profecia pronunciada ainda pouco pela voz da menina. E rente ao horizonte, todos avistaram aquele espectro com o cabelo de vassoura...

– Zuzu, veja! É a tal Loryanna que você falou?!

– Eu... eu... acho que sim. Bem, eu nunca a vi, mas pelas circunstancias e descrições que ouvi de minha tia, acho que seja...

E nem deu tempo de nada. O ambiente se transformara num enorme tufão sombrio. Embora a ventania não arrastasse ninguém, trazia um calafrio na alma de todos. Pela escuridão instaurada instantaneamente, ninguém pôde arredar o pé dali; o alienígena não reagia a nada, apenas observava, mas todos com as vistas turvas pela poeira levantada, em alguns flashes de segundos, iam acompanhando a figura de Loryanna vindo em sua direção.

[continua...]

Katiuscia de Sá
Escrito entre: 14 e 25 de julho de 2013.
*ouvido “Haja o Que Houver” (Madredeus).
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*Leia também A Cidadela do Campo - CAPÍTULO UM




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